Desconstruir para reconstruir

    Fruto da gastronomia modernista, a desconstrução dos pratos tem como mestre o chef catalão Ferran Adriá

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    Brincar com os alimentos e aguçar os sentidos humanos de forma inusitada e irreverente é uma tendência gastronômica que está em alta nos últimos tempos. A desconstrução dos pratos – que tem como premissa fazer uma nova leitura do alimento usando as mais variadas técnicas e prezando pelo sabor – é uma vertente da gastronomia modernista que vem quebrando paradigmas e conquistando inúmeros admiradores mundo afora.

    Considerado o “pai da desconstrução”, o chef catalão Ferran Adriá é reconhecido mundialmente por suas técnicas de manipulação dos alimentos, que começaram a ser desenvolvidas no fim de 1980. Atualmente, quem vê o chef no auge da fama não imagina que sua trajetória tenha sido marcada pelo acaso – embora a dedicação e os estudos ao longo do percurso tenham contribuído bastante para ele alcançar o sucesso.

    Adriá trabalhou com o irmão desde os 14 anos, tentou carreira no futebol, serviu ao exército e foi parar na cozinha de um grande restaurante lavando pratos com a única pretensão de juntar dinheiro para passar férias em Ibiza. Sem nenhum conhecimento prévio ou mesmo aquelas tradicionais histórias de inspiração familiar, ele foi se descobrindo aos poucos e, com maestria, conseguiu revolucionar a culinária moderna com conceitos que renderam muitos títulos e prêmios ao longo da carreira.

    Durante 27 anos, comandou o El Bulli – considerado o melhor restaurante do mundo. Localizado em uma praia quase na fronteira entre a Espanha e a França, o estabelecimento tinha o funcionamento limitado a seis meses do ano apenas, uma fila de espera que podia durar até dois anos e atendia, no máximo, 50 comensais por dia. No entanto, no auge da sua fama, Adriá resolveu que era hora de dar um tempo e, em 2011, fechou as portas do restaurante para rever suas prioridades e se dedicar a outros projetos. Pensou, inclusive, em abandonar a gastronomia, mas conseguiu encontrar seu lugar tornando o El Bulli um grande laboratório e, entre dezenas de projetos paralelos, decidiu lançar um museu gastronômico retratando o sucesso do restaurante.

    Além de adjetivos como “mago”, “gênio” e “inovador”, o mito da gastronomia modernista também ganhou centenas de discípulos pelo mundo, e sua arte vem sendo estudada e aplicada em diversos locais. O cozinheiro Rodrigo Carnevale Rodrigues, de 27 anos, acredita que “a revolução liderada por Adriá seja, talvez, o movimento mais importante na gastronomia desde a “nouvelle cuisine”. Para ele, a aplicação de técnicas não tradicionais e a desconstrução de preparações clássicas abrem portas para uma gama enorme de novos conhecimentos e aplicações.

    “A partir dessa nova perspectiva, pode-se observar inspirações que estão fora do que era diretamente ligado ao alimento. A cozinha modernista observa uma receita clássica e a decompõe em seus elementos básicos, utilizando os mesmos sabores para a construção de uma nova receita que em essência é a mesma, mas com novas características”, pontua.
    Formado na primeira turma de gastronomia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Carnevale atua como cozinheiro no AC Hotel – Porto Maravilha e, ao contrário do mestre Adriá, gosta de cozinhar e participa dos processos culinários da família desde a infância. “Venho de uma família italiana e sempre estive inserido na realidade da cozinha, vendo minha avó cozinhar”, relata.

    O jovem acredita que trabalhar com desconstrução dos pratos exige muitos estudos e testes, além de uma aceitação das mudanças do preparo clássico. “Para obter sucesso nesse ramo, é primordial ter total conhecimento dos ingredientes e das aplicações corretas e precisas das técnicas”, ressalta.

    Embora Carnevale tenha consciência de que o público precisa estar disposto à aceitação de uma nova leitura das preparações, ele acredita que as técnicas da cozinha modernista dão um ar renovado à gastronomia clássica e influenciam cada vez mais a cozinha brasileira contemporânea, que se apropria de suas técnicas para a confecção de pratos. Ao contrário do que muitos chefs vanguardistas defendem, ele acredita que, por mais moderna que a técnica possa ser, as receitas tradicionais não perdem seu lugar. “Aqueles pratos habituais continuam tendo espaço, seja sendo expostos de maneira desconstruída ou remontados – alterando suas características primárias”, diz.
    Outra questão bastante discutida entre os chefs do mundo inteiro em relação à desconstrução é a acessibilidade do público. Carnevale acredita que muitos estabelecimentos têm se dedicado para democratizar essa vertente. “Diversos restaurantes têm utilizado técnicas para a realização de preparos mais democratizados. Com o aumento da presença acadêmica da gastronomia no mercado, esse tipo de conhecimento tende a ser disseminado, e as mudanças provavelmente começarão a atingir um público mais amplo”, pondera.

    Alterando o conceito e mantendo o sabor

    A chef belorizontina Ana Paula Parreira Carrusca também concorda que a cozinha modernista promove conceitos que abrangem um público mais elitizado. Isso aconteceria, justamente, por fomentar pratos elaborados e criados por chefs renomados e por fazerem parte do menu de restaurantes sofisticados, aos quais uma grande população não tem acesso devido ao poder aquisitivo. “Por outro lado, uma forma de democratização são os eventos de gastronomia que estão acontecendo atualmente em todo o Brasil, praticamente. A população tem a oportunidade de conhecer as criações desses chefs sem gastar uma quantia alta e obtendo uma experiência incrível”, analisa.
    Para ela, o grande diferencial da desconstrução dos pratos está em fazer com que o cliente tenha uma experiência sensorial, que em cada garfada vá descobrindo o paladar e desvendando as texturas e a aparência dos alimentos. “O importante é aguçar no cliente as sensações da receita original, porém modificada em todos os quesitos. Surpreender com novas cores, texturas, aroma e formato”, afirma.

    Formada em administração de empresas, Ana Paula está concluindo uma pós-graduação em gestão da qualidade em gastronomia e já é dona do próprio buffet. Ela também atua como chef ao vivo em eventos e já trabalhou em restaurantes renomados, mas seu ideal sempre foi ter o próprio negócio.

    A chef acredita que um dos maiores desafios para quem atua com desconstrução é manter a criatividade em alta, cuidando sempre para apresentar pratos inéditos, sem copiar outros profissionais. “A criatividade é um fator primordial. É preciso apresentar os pratos de uma forma diferente e inovadora mantendo o sabor e, ao mesmo tempo, emocionando os comensais”, diz.

    Além disso, Ana Paula reforça que, para quem pretende se aventurar na área, é importante manter-se atento às novidades da gastronomia, identificar novas tendências, estudar e se dedicar a criar – sem plagiar outros colegas de profissão. No máximo, inspirando-se em grandes nomes da gastronomia. “Além de cursos tecnólogos – que agregam bastante conhecimento e qualificação – tratar os ingredientes com amor e respeito pode fazer toda a diferença”, ressalta.
    Entre as criações mais irreverentes que a chef mineira já desconstruiu estão pratos como galinhada com pequi, bacalhoada portuguesa, mandioca com carne seca, supremo de frango e a tradicional feijoada. “A recriação e a desconstrução de uma receita tradicional altera o conceito e mantêm o sabor. Também podemos inserir nesse contexto o que vai ao encontro dos sentidos da gastronomia compreendidos pelo restaurante em si: o cheiro, a limpeza, a música, as pessoas, a alegria em receber, a simpatia dos garçons. Todo esse ambiente compõe esses momentos que ficam marcados”, pontua.

    Para a profissional, muitas novidades que estão surgindo nessa vertente são interessantes tanto para os profissionais da área quanto para o público que aprecia uma boa comida. “Além das elaborações, do minimalismo e do cuidado com a apresentação dos pratos, o surgimento de chefs importantes que valorizam o ingrediente regional em suas preparações tem revolucionado a gastronomia no mundo inteiro”, destaca. “Ao misturar texturas e temperaturas, é possível provocar sensações únicas que fazem de um jantar uma noite inesquecível em todos os sentidos que a gastronomia pode proporcionar”, finaliza.

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