Carreira: ‘Desafio Bird Box’, sim, quando o assunto é jantar às cegas

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    Comer de olhos vendados já é sucesso antes mesmo da grande repercussão sobre o filme original Netflix mais assistido de todos os tempos

    No filme “Bird Box”, suspense da Netflix visto por mais de 45 milhões de contas do serviço em apenas sete dias, conforme anúncio da própria empresa, a visão, ou melhor, a falta dela, é o destaque da obra, que já é o original Netflix mais assistido de todos os tempos.

    O filme, dirigido por Susanne Bier e baseado no livro “Caixa de Pássaros”, de Josh Malerman, conta a história de uma mãe tentando salvar seus filhos após uma misteriosa ameaça invadir a Terra. Durante toda a narrativa, estrelada por Sandra Bullock e John Malkovich, só sobrevivem os personagens que conseguem cobrir seus olhos para não ficarem expostos aos seus maiores pesadelos.

    Desde o lançamento, no fim de 2018, “Bird Box” motivou o surgimento de muitos memes na Internet, assim como o ‘Desafio Bird Box’, por meio do qual muitas pessoas resolveram fazer várias coisas do dia a dia com os olhos tapados por algo, como andar pelas ruas, praticar esportes, comer e até dirigir. Entretanto, em meio a essa repercussão, a Netflix chegou a emitir um comunicado pedindo para que os telespectadores não se arriscassem dessa maneira.

    Em seu perfil oficial no Twitter, a plataforma postou o seguinte alerta: “Não acredito que tenho de dizer isso, mas: por favor, não se machuquem com o desafio Bird Box. Nós não sabemos como começou, e apreciamos o amor [pelo filme], mas o Garoto e a Garota têm apenas um desejo para 2019 e é que vocês não acabem em um hospital por causa de memes”.

    No entanto, apesar do comunicado, muitas pessoas continuam participando do desafio, que não é tão inovador e arriscado assim quando o assunto é alimentação. Afinal, no mercado food service, a experiência de comer com os olhos vendados já é um sucesso antes mesmo da popularização do filme “Bird Box”, inclusive no Brasil.

    O Ateliê no Escuro, empresa especializada em eventos sensoriais localizada em São Paulo, capital, é prova disso. O negócio possui 11 anos e, só em 2018, alcançou 2300 pessoas durante 70 eventos relacionados ao serviço de almoço, jantar e/ou degustação às cegas.

    Maria Lyra Muller, psicóloga e sócia-fundadora do ateliê, conta que, só nos últimos cinco anos, conseguiu faturar mais de R$ 2 milhões por meio desse seu diferente trabalho no ramo da alimentação fora de casa. “O Ateliê é uma empresa especializada em experiências sensoriais com o propósito de inspirar/possibilitar novas formas de percepção. Essas experiências podem acontecer no formato de um evento gastronômico ou não. Muitas vezes, nosso trabalho acontece em forma de workshop. Como somos três psicólogas e uma terapeuta corporal, nosso leque de ação vai além. No entanto, o jantar no escuro foi nosso primeiro formato de trabalho e é ainda o mais conhecido”, relata.

    Segundo Muller, o serviço de alimentação com os olhos vendados que oferece engloba a ideia principal de que “os participantes vivam uma experiência sensorial ampla. Criamos uma forma para isso acontecer de forma acolhedora e genuína. Sempre temos um tempo de receber as pessoas, com um welcome drink, um tempo chegar de fato. E é nesse momento em que fazemos uma apresentação do Ateliê, da equipe e da proposta com algumas dicas. Depois, cada um é vendado e conduzido para a sala da experiência e, aí, acontece tudo o que foi desenhado por nós, pelos músicos e pelos chefs para o dia. Ao final, sempre temos um momento de conversa, de troca, que traz mais corpo para o que cada um viveu e é nesse momento que o menu é apresentado. Importante registrar que recolhemos restrições alimentares e as respeitamos durante o jantar, pelo fato de tudo ser surpresa”, detalha a empresária.

    Mariana Pelozio
    “Estamos carentes de experiências que nos levem à interiorização”, diz Mariana Pelozio, chef e proprietária do Restaurante Duas Terezas

    Outro exemplo de sucesso no ramo é o Restaurante Duas Terezas, que também fica em São Paulo, capital. Mariana Pelozio, chef e proprietária da casa, abriu o local em 2016, mas, desde 2014, atua com jantar às cegas em eventos. Segundo Pelozio, “a melhor forma de explicar para alguém sobre o que fazemos no jantar às cegas é: uma experiência sensorial para mexer e aguçar todos os sentidos por meio do paladar, incluindo as memórias, as emoções, a intuição. É uma experiência muito completa, que envolve o participante não apenas para simplesmente comer, mas para viver o sabor”, salienta a chef.

    O jantar às cegas no Duas Terezas é oferecido uma vez por mês para até, no máximo, 30 pessoas. Todavia, a contratação do serviço para grupos fechados, empresas e equipes também é possível. “Eu divido o menu em 5 etapas: 2 entradas, 2 pratos e 1 sobremesa. Cada prato é harmonizado com uma bebida. Durante todo o jantar, o participante é guiado para melhorar sua experiência com poemas, músicas, massagens, sons. Tudo para ajudar a introspecção e a melhor experiência pessoal de cada um. Sempre repito que o jantar às cegas não é uma gincana de quem adivinha mais ingredientes. O ganho é de quem consegue aproveitar e viver mais. No fim, eu ainda estimulo que todas as pessoas falem o que acharam sobre o que comeram. E o resultado é superdivertido. As pessoas experimentam os mesmos pratos, mas têm percepções completamente diferentes”, partilha Pelozio.

    Experiência que vale a pena

    “Vivemos um momento em que somos superestimulados o tempo todo e, por outro lado, estamos, cada vez mais, trocando as experiências reais por virtuais. Trocamos a comida de verdade por refeições rapidinhas. É assustador quando eu pergunto para os participantes do jantar às cegas: ‘qual foi a última vez que você fez uma refeição prestando, realmente, atenção no que estava comendo? Sem mexer no celular, sem estar com a cabeça em outro lugar?’ E as pessoas não conseguem responder. Não se lembram. Estamos carentes de experiências que nos levem à interiorização. Para mim, é sempre um prazer enorme quando as pessoas saem do jantar comentando que se lembraram de uma experiência da infância ou descobriram um novo sabor simplesmente porque pararam para dar atenção”, argumenta Pelozio, do Duas Terezas.

    Para Muller, do Ateliê no Escuro, comer e beber sem ver nada é prazeroso tanto para quem topa a experiência quanto para quem a proporciona. “É gostoso para nós que fazemos e para os nossos parceiros, apesar da trabalheira intensa que é. Mas, principalmente, para quem participa, que pode se entregar, se deixar conduzir em uma série de eventos pensados para alimentar o corpo e a alma (menu, música ao vivo, massagem, leituras, boas conversas)”, diz.

    Perfil de cliente

    Tanto no Ateliê do Escuro quanto no Duas Terezas, o perfil de cliente que vai até aos estabelecimentos em busca de desafiar suas experiências sensoriais é bastante diversificado.

    Muller, do Ateliê no Escuro, afirma que o público do seu negócio é “muito amplo. Empresários, profissionais liberais, jovens casais, grupo de amigos ou pessoas mais maduras. Pessoas ligadas em gastronomia, outras em experiências diferentes, pessoas que querem surpreender ou ser surpreendidas. Empresas que buscam substância para seus programas de desenvolvimento humano ou que querem presentear seus funcionários etc”.

    Já Pelozio, do Duas Terezas, diz que classifica seus clientes como “pessoas ousadas! Gente que quer ir além na experiência gastronômica. Normalmente, são pessoas que gostam de viajar e comer. Ou seja, são pessoas com bastantes referências. O cliente corporativo, por exemplo, chega buscando uma forma de integrar e abrir a mente dos colaboradores para a criatividade e a novidade, quer fazer com que o colaborador saia da zona de conforto”.

    Inspirações

    O Ateliê no Escuro “nasceu de uma experiência inspiradora que tivemos jantando no Dans Le Noir, que, depois, descobrimos ser inspirado no trabalho pioneiro do Diálogo no Escuro, na Alemanha. Daquele momento em diante, eu, Maria Lyra e minha colega de faculdade de psicologia, a Elis Feldman, começamos a fazer por prazer e encantamento experiências para amigos e familiares como brincadeira. Sentimos que o trabalho tinha muita riqueza e potencial e seguimos fazendo e estruturando o Ateliê. Logo em seguida, outra colega nossa, a Gabriela Pistelli, se juntou a nós e, um pouco depois, a terapeuta corporal Janaína Audi. Formamos o quarteto da sociedade que funciona até hoje e, desde então, seguimos pesquisando e desenvolvendo os eventos, buscando despertar em todos o que sentimos”, relata Muller.

    O Duas Terezas, por sua vez, é fruto de referências familiares de Pelozio. “O Duas Terezas é inspirado nas minhas duas avós, as duas Terezas. Então, em cada prato do restaurante, o que ofereço são, realmente, experiências que eu tenho de família, de sabores que aprendi e recebi em casa. O nosso cardápio passa pelo afeto e nasceu dessa vontade que eu tenho de fazer com que as pessoas se reconectem ao seu paladar, à sua história alimentar. O jantar às cegas passa pelo mesmo caminho: afeto e memórias gustativas”, ressalta a chef.

    Aceitação

    As empresárias acreditam que o serviço de almoço, jantar e/ou degustação com os olhos vendados já é muito bem aceito pelos brasileiros. Entretanto, alertam que o mercado nacional apresenta certas particularidades importantes de serem observadas e levadas em consideração.

    “Sinto que os brasileiros ainda têm muito preconceito com alimentos. Em todo jantar, recebo listas enormes de pessoas que não querem comer cebola, miúdos ou carnes exóticas. Eu acho engraçado. Normalmente, conversando com essas pessoas, descubro que é apenas medo e preconceito mesmo. Por exemplo, há quem nunca tenha experimentado um fígado de galinha, mas acha o máximo comer foie gras (fígado de ganso). No fim, a pessoa se surpreende com a experiência”, pontua Pelozio, do Duas Terezas.

    Muller, do Ateliê no Escuro, destaca: “Entendemos que, antes de chegar em nós, o participante do jantar às cegas já passou por uma espécie de triagem. Digo isso porque tem pessoas que podem criar fantasias mirabolantes sobre o que possa ser nosso trabalho ou que não se sintam abertas a vir e experimentar algo novo, desconhecido, fora de seu controle. Mas as que vêm gostam muito, e temos uma taxa boa de pessoas que retornam. Temos recordes de oito vezes, seis vezes”.

    Ateliê no Escuro
    www.atelienoescuro.com.br
    Duas Terezas
    www.duasterezas.com.br

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